quinta-feira, 10 de março de 2016

Democracia entre golpes

Publicado no blog Insurgente Coletivo
Israel Souza[1]
            Em uma passagem de O capital, Marx fez referência a um provérbio inglês, segundo o qual, “quando dois ladrões brigam, algo de útil acontece. Realmente, a luta ruidosa e apaixonada entre as duas facções da classe dominante, para determinar qual delas explorava mais cinicamente o trabalhador, serviu para revelar o que havia de verdadeiro dos dois lados” (MARX, 2003: 782).
O autor se referia aí à briga que se desenrolava entre a “aristocracia da terra” e a “burguesa industrial”. Mas, particularmente hoje, essa passagem faz lembrar o atual cenário político brasileiro e os conflitos entre as duas facções da direita que ora se desenrolam.
Para a “facção azul” (encabeçada pelo PSDB e consortes), o Brasil está entre a democracia e uma ditadura comunista ou bolivariana. Por essa ótica, a democracia só poderia prevalecer se o atual governo caísse e ela assumisse. Para a “facção vermelha” (encabeçada pelo PT e consortes), o país está entre a democracia e uma ditadura fascista. Neste sentido, a democracia depende da permanência do atual governo e da derrota (ou contenção) de seus inimigos, os golpistas.
Ambas as facções arrogam para si a tarefa de defender a democracia contra um golpe, contra uma ditadura. Embora acostumadas a mentir à sociedade, ao se acusarem, “algo de útil acontece”. Dizem a verdade uma da outra. Ambas são golpistas e antidemocráticas. São as principais responsáveis pela involução democrática dos últimos anos, fragilizando e/ou desmantelando as conquistas da Constituição de 1988.
Profundamente corrupta, a facção azul acusa a corrupção nas forças governistas apenas para miná-las, visando a ocupar o lugar que hoje elas ocupam. Pouco lhe importa a democracia. Por seu tempo, enredadas até a medula em corrupção, as atuais forças governistas repetem um roteiro já nosso conhecido. Toda vez que acuadas, denunciam perseguição dos outros e invocam o apoio da esquerda contra o golpismo e a favor da democracia. É sempre assim.
Nesses momentos, gritam coisas como “O golpe é contra você”, “O golpe é contra milhões de brasileiros”, “O golpe é contra a democracia”, “O golpe é contra os trabalhadores e os pobres”, “O golpe é contra toda a esquerda” etc. E assim, invertendo por completo a ordem das coisas, tratando uma disputa político-partidária como se fora a própria luta de classes, tentam nos fazer crer que é a democracia e a esquerda que dependem do PT e não o contrário. Com efeito, a democracia não estaria tão fragilizada e a esquerda tão enlameada, não fosse a atuação dos governos petistas.
Em verdade, o golpe que a facção azul da direita brasileira pretende dar em nossa democracia a facção vermelha está dando. A entrega do pré-sal (proposta por José Serra (PSDB) e acolhida pelo governo), reforma da previdência, aprovação da lei antiterrorismo, possível congelamento do salário mínimo (aventado por representantes do governo) são alguns dos fatores que mostram o quanto estão irmanadas em seus intentos antidemocráticos e golpistas. A democracia brasileira está entre golpes.
Dessa forma, o conflito que se desenrola hoje no país não é entre um grupo democrático e outro golpista. Ambos são golpistas. Ambos pretendem sangrar a democracia. Só divergem em como sangrá-la. Agora que os conflitos se acirram e parece difícil um recuo, não devemos desejar senão que se arruínem e se devorem entre si.
Nesse momento em que mais desabridamente favorece os de cima e encurrala os de baixo, o PT já não merece nem apoio nem solidariedade dos trabalhadores. Teve todas as chances de que precisou para reorientar o governo, as que mereceu e as que não mereceu; e, ainda assim, não o fez. Não há desculpas. A classe trabalhadora e as forças democráticas já não podem quedar-se reféns suas. Precisamos trilhar outro caminho, independente, verdadeiramente alternativo.
É chegada a hora de o PT colher abundantemente o que abundantemente plantou.

Referências bibliográficas

MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.




[1] Cientista Social, com habilitação em Ciência Política e membro do Núcleo de Pesquisa Estado, Sociedade e Desenvolvimento na Amazônia Ocidental (NUPESDAO). Email: israelpolitica@gmail.com

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