domingo, 21 de dezembro de 2014

Desmascarando os mercadores da natureza

Uma tragédia que se revela nos territórios

Por Winnie Overbeek

Ao apresentar essas experiências práticas - uma na Ásia, outra na África e a última na América Latina, a proposta é a de trazer elementos palpáveis e concretos para o debate sobre os mecanismos de economia verde que, muita vezes, fica no plano da abstração ou é inacessível devido à sua linguagem intrincada e aos fundamentos obscuros. E, principalmente, explicitar seus impactos e efeitos sobre os povos indígenas.
Nesse sentido, questiona-se, por exemplo: Os créditos de carbono, que favorecem empresas poluidoras e agentes do capital financeiro, também são benéficos para as populações indígenas que vivem e dependem das florestas? É justo chamar os projetos-piloto de Redd de projetos “modelo”? Até que ponto as vidas dos povos e comunidades envolvidos com esta política corresponde com a abundante propaganda que projeta a economia verde como a solução para as mudanças climáticas, a destruição ambiental e a pobreza?
Vejamos o que mostra a realidade:

Indonésia – Sem direito à terra, sem florestas
Na ilha e província de Kalimantan, localizada no sudeste asiático, entre 2009 e 2013, foram investidos mais de US$ 30 milhões num projeto de Redd denominado Kalimantan Forest Climate Partnership(KFCP). Resultado de uma parceria entre os governos da Indonésia e da Austrália, o KFCP pretende compensar as altas emissões australianas de carbono, resultado de uma economia muito dependente da mineração e com alto consumo de carvão mineral, através da proteção de uma área de 120 mil hectares, que inclui o território de comunidades indígenas Dayak. Apoiado por ONGs internacionais, como WWF, Wetlands e Care, este projeto foi apresentado ao mundo como um “modelo”. No entanto, em 2013, após quatro anos de intensos protestos locais, nacionais e internacionais contrários ao projeto, ele foi suspenso.

Quais foram os motivos que levaram um projeto “modelo” a ser suspenso apenas quatro anos após o seu início?
Na região onde o KFCP foi implementado havia, de fato, um alto índice de desmatamento, causado pela expansão da monocultura em larga escala da palma africana (dendê), pela extração de madeira e pela mineração. As comunidades indígenas que moram dentro da área do projeto Redd haviam solicitado, há bastante tempo, que as autoridades tomassem medidas para acabar com esse desmatamento, realizado por empresas com forte influência política. No entanto, além de não ter focado nas causas do desmatamento, o KFCP causou um profundo descontentamento entre os indígenas ao interferir nos seus modos de vida. Sete comunidades, totalizando 2.600 famílias, foram diretamente afetadas pelo KFCP.
Apesar da coordenação do projeto ter afirmado, reiteradamente, que teve o consentimento da comunidade para o projeto, a comunidade nega veementemente qualquer ato neste sentido. Ao contrário, ela queixa-se de que o KFCP foi implementado “de cima para baixo” e que a coordenação conseguiu apenas a assinatura dos chefes que representam o governo da Indonésia em cada comunidade – posições que seriam similares às ocupadas, antigamente, pelos chefes da Fundação Nacional do Índio (Funai) nas aldeias no Brasil. Os indígenas contam que foram realizadas reuniões mas apenas para a “socialização em Redd”. No entanto, mesmo depois de várias reuniões, eles disseram que ainda não entendiam o que era Redd.
De qualquer modo, eles não se negaram a participar do projeto porque receberam promessas de emprego e dinheiro. O emprego, de fato, aconteceu, mas apenas de membros de algumas famílias. Empregados no reflorestamento, eles ganharam cerca de R$ 200 para plantar 500 árvores (por família) - sendo que uma parcela era paga antes e a outra depois do plantio. No entanto, tiveram que, com este pagamento, arcar ainda com os custos envolvidos na atividade, como o do viveiro e do transporte das mudas. Além disso, o projeto definiu os tipos de árvores que deveriam ser plantadas nas suas áreas tradicionais e as sugestões dos indígenas para plantarem árvores mais adaptadas às condições locais foram ignoradas.
Além da baixa remuneração, os indígenas tinham menos tempo para dedicarem-se às atividades tradicionais de subsistência, como a pesca, a agricultura e a coleta de borracha e de outros produtos da floresta. Para piorar a situação, menos da metade das árvores plantadas sobreviveram. Para os Dayak, essas árvores eram do projeto, não da comunidade.
Enquanto as árvores do reflorestamento morriam, o desmatamento em áreas próximas continuava, sem parar, destruindo a floresta. E os indígenas perguntaram: “por que em vez de plantar mudas que morriam, o projeto não focava em evitar o desmatamento?” e “este não é justamente o propósito do Redd?”.
Eles passaram, então, a entender que essa destruição é feita para atender planos empresariais, como a expansão do monocultivo de palma africana que, por ser uma atividade prioritária para o governo, não é coibida por este. A falta de transparência em relação à gestão financeira e a impossibilidade de participarem das decisões relativas ao projeto - e, portanto, às suas próprias vidas - também foram denunciadas pelos Dayak.
Mas o que talvez seja ainda mais grave é que, com o projeto Redd, as reivindicações da comunidade perante as autoridades ficaram relegadas. A principal delas é o reconhecimento e a demarcação das suas terras tradicionalmente ocupadas. Por conta própria e contando com a ajuda de uma organização indigenista, várias comunidades já fizeram, a mão, mapas que identificam os limites do território das comunidades, evidenciando as áreas das aldeias, das florestas que utilizam, dos rios onde pescam e outras para o plantio.
Antes da implementação do KFCP, os Dayak estavam esperançosos no sentido de avançarem em sua luta pela terra, já que – em um país que não reconhece os direitos territoriais dos povos tradicionais - a província de Kalimantan tem um governador indígena que, inclusive, criou uma legislação reconhecendo estes direitos. No entanto, desde a implementação do projeto KFCP nada mais avançou em relação à demarcação da terra dos Dayak porque a coordenação do projeto considera que avançar com a questão dos direitos ao território era algo desnecessário.
Enquanto isso, dentro da terra tradicional indígena, o cultivo do dendê, a exploração da madeira e a mineração continuam expandindo e, obviamente, destruindo a floresta.
Quênia – Incêndios expulsam o povo de sua terra ancestral
Com uma população de pouco mais de 30 mil pessoas, o povo indígena Sengwer vive desde tempos imemoriais nas montanhas de Cherangany, no Quênia, em uma das principais áreas de floresta e captação de água do país. Apesar da Constituição Queniana, de 2010, conceder-lhes direitos inalienáveis às suas terras ancestrais, o governo os considera como “refugiados internos” e vem realizando um violento processo de expulsões massivas e deslocamentos forçados.
Nos últimos anos, organizações sociais quenianas e internacionais denunciam que o Serviço Florestal do Quênia e uma unidade paramilitar da polícia vêm, sistematicamente, expulsando os Sengwer das suas casas, além de queimá-las e destruir seus pertences As violações são tão graves a ponto dessas organizações afirmarem que trata-se de uma situação de genocídio desta minoria étnica de caçadores e coletores. Segundo afirmou uma liderança Sengwer: “o governo do Quênia está forçando-nos no caminho da extinção”.

Mas o que o Redd tem a ver com toda esta drástica realidade?
Em 2007 a região onde vivem os Sengwer foi incluída no Projeto de Manejo de Recursos Naturais (NRMP, sigla em inglês). Elaborado com o apoio financeiro do Banco Mundial, ele prevê a implementação do Redd no Quênia. Iniciaram-se, então, ações de pressão sobre os indígenas para que abandonem suas terras, e as tentativas têm ficado cada vez mais violentas.
Em uma atitude bastante cínica, o Banco Mundial ofereceu ajuda ao governo, colocando-se à disposição para compartilhar seus conhecimentos em relação às “melhores práticas” de assistência às pessoas afetadas para o que eles chamam de “reassentamento involuntário”. É importante ressaltar que o Banco Mundial é um histórico financiador de políticas e práticas extremamente poluentes, como a extração de combustíveis fósseis, além de ser um dos maiores financiadores das políticas de crédito de carbono.
Em 2013, os Sengwer entraram na justiça e obtiveram uma liminar que assegura o fim das violentas remoções até que a questão dos direitos dos indígenas sobre suas terras seja resolvida. No entanto, o governo queniano ignora esta ordem judicial e continua destruindo as casas das famílias indígenas com o objetivo de expulsá-los de suas terras ancestrais para implementar o projeto de Redd.
O governo justifica a expulsão dizendo que a única forma de conservar as florestas é expulsar todas as pessoas da área porque, garantem, elas são as responsáveis pela destruição – o que é uma tremenda distorção da realidade. Devido à sua profunda integração com a natureza, os Sengwer sempre preservaram as florestas e todo o ecossistema das montanhas Cherengany. No entanto, agora estão sendo aniquilados em seus territórios imemoriais sob o pretexto da “conservação” devido a um projeto de Redd. O chefe do departamento. de conservação do Serviço Florestal do Quênia, Solomon Mibei, admite: “O mecanismo Redd+ é uma opção futura”. Ele também informou que já começaram a fazer oficinas com as comunidades do entorno da área sobre “finanças de carbono”.
Peru – Solidariedade às avessas: repressão e falta de alimento
Há décadas o desmatamento na Amazônia peruana é impulsionado por um extenso número de projetos de extração de petróleo e de minério. Supostamente para combater o desmatamento, atualmente há também dezenas de projetos de Redd. O Project Pur (cuja tradução é Projeto Puro), desenvolvido na região amazônica de San Martin desde 2010 pela organização francesa Alter Eco, é também considerado um “modelo”. Ele foi implementado em uma região habitada por comunidades campesinas, em parte oriundas de outras regiões afetadas por grandes projetos petroleiros e minerários, e também pelos indígenas Shambuyaco e Yurilamas.
Um estudo de caso da organização Amigos da Terra França (ATF) mostra que essas populações não foram bem informadas e nem consultadas sobre o projeto “Puro”. Um morador afirma: “Eles nunca fizeram um encontro conosco. Às vezes, havia encontros, mas poucas pessoas sabiam. Está errado afirmar que todos nós concordamos com o projeto”.
O projeto foi concebido pelo empresário francês Tristan Lecomt, que fez sucesso com o comércio “solidário”, inclusive no Peru. Entidades locais que o empresário já conhecia desde a realização deste trabalho “solidário” foram usadas para montar uma organização chamada Fundación Amazonia Viva, com o objetivo de focar na conservação florestal e no reflorestamento. Através dos membros dessa fundação foram solicitadas as concessões para a conservação florestal de uma área total de 300 mil hectares, chamada de Biocorredor Martin Sagrado, onde está implementado o Project Pur. Nem mesmo essas organizações locais entendem o que é Redd. No entanto, seus representantes afirmam que queriam atender ao pedido do empresário.
Como o documento que descreve o Projeto Puro aponta as práticas agrícolas das comunidades como sendo 70% responsáveis pelo desmatamento na região, a restrição de uso da terra para as comunidades é um dos seus mais severos impactos. Ele também prevê, caso seja necessário, medidas repressivas: “O projeto propõe reforçar relações entre a equipe da Fundação Amazônia Viva, a polícia e os militares para criar um grupo capaz de prevenir mais ocupação da floresta, desmatamento ilegal, o uso do fogo para preparar a terra e a caça (...)”.

Um dos benefícios apresentados é o reflorestamento, que o projeto afirma desenvolver com o povo Shambuyaco. Os indígenas ganham 1 sol peruano (0,27 euros) por árvore, mas há um desconto de 20% no pagamento para arcar com os custos administrativos e de transporte da cooperativa. Além disso, os direitos sobre o carbono são todos transferidos para o Projeto Puro.
Houve uma tentativa de implantação de um projeto de Redd também na comunidade Shambuyaco, mas uma liderança comentou que o período proposto, de 40 anos, era tempo demais, além do contrato ter sido escrito em língua estrangeira.
Soma-se a este contexto o fato de que o projeto não contribui em nada com a regularização do território das comunidades indígenas. Uma representante de uma federação regional afirmou que: “Nós não temos uma documentação que nos dá direito sobre nossas terras, como povos indígenas. É injusto porque sempre cuidamos desta terra, que nos alimenta, que nos oferece caça e plantas medicinais, com as quais podemos nos curar. Não queremos esta área de conservação, queremos nosso direito sobre a terra garantido, primeiro”.
Este e muitos outros projetos de Redd têm sido certificados com um selo de “qualidade”. Neste caso, a certificação foi feita pelo SCS Global Services, que certificou o projeto conforme os Padrões de Clima, Comunidade e Biodiversidade (CCB). Ao serem questionados sobre os motivos de não visitarem as comunidades mais afetadas pelos projetos, cujo acesso é mais distante e difícil, os representantes dessa certificadora disseram que trabalham por amostra. Porém, curiosamente, a “amostra” selecionada incluiu exatamente as comunidades menos afetadas pelo projeto. Dos custos do Projeto Puro, 96% são gastos com administração e outras despesas de terceiros, como estes da certificação.

Resistência, para mudar a história
Em cada visita às comunidades afetadas por projetos Redd, a história se repete. Uma história de violações de múltiplos direitos. Primeiro, constata-se a falta de informações e entendimento sobre o projeto, sobre o Redd e suas implicações. Mesmo assim, carentes de políticas públicas e por não terem seus direitos respeitados, as comunidades acabam aceitando o projeto em função das promessas de melhoria de vida. Posteriormente, com o não cumprimento das promessas, a comunidade se frustra. O projeto proíbe as atividades tradicionais, principalmente as agrícolas. Não há avanços nas demandas mais importantes das comunidades, especialmente no reconhecimento dos direitos ao território. E, na maioria dos casos, o desmatamento não pára.
Felizmente, por outro lado, a revolta com a imposição de projetos de economia verde é crescente. Também aumentam as articulações para mudar essa realidade e fortalecer a resistência local, no sentido de priorizar as verdadeiras soluções para os problemas da humanidade. A criação da rede “Diga Não ao Redd na África” (NRAN) e de outras articulações na América Latina e na Ásia são alguns exemplos desse processo. Nosso desafio é fortalecer essa resistência ao avanço do capital sobre a natureza e contribuir para a recomposição da solidariedade entre as comunidades que o Redd e outros mecanismos esforçam-se para destruir.

Winnie Overbeek é coordenador internacional do Movimento Mundial pelas Florestas Tropicais (WRM, sigla em inglês)

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