segunda-feira, 6 de agosto de 2012

‘A Igreja tem de correr riscos, inclusive de morte’

“Se a Igreja não intervier nesses casos, ela negará a sua natureza. Ela tem de estar ao lado do pobre, do sofredor, do explorado. Ela não deve tomar o lugar de ninguém, mas tem de ser solidária ao povo”

É com essa declaração que o arcebispo emérito de Porto Velho, Dom Moacyr Grechi, reafirma o posicionamento que a Igreja deve tomar diante da construção de empreendimentos no Norte e Nordeste do país, como as hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio, que estão sendo construídas no rio Madeira, gerando impactos às populações ribeirinhas e ao meio ambiente. Depois de uma longa trajetória ao lado das Comunidades Eclesiais de Base – CEBs, no Acre, onde foi bispo, e em Porto Velho, onde foi arcebispo, Dom Moacyr destaca que a questão ambiental e ampliação das periferias nos estados brasileiros merecem atenção da Igreja. “É na periferia que o crime organizado continua. Muitos jovens são mortos e, além disso, a droga é algo comum nesses locais. Então, as periferias são um grande desafio para a Igreja hoje”, assinala. Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, Dom Moacyr descreve um pouco da trajetória da Igreja na Amazônia e critica: “Quando assisto aos programas de televisão da Igreja, vejo que estão abençoando demais pela televisão. (…) A Igreja permite e até aconselha benzer água como lembrança do batismo, como forma de gratidão pelo batismo recebido, mas tem valorizado demais o devocionalismo, e esquece o fundamental da pregação”.

Dom Moacyr Grechi, arcebispo emérito de Porto Velho: A Igreja tem de estar ao lado do pobre, do sofredor, do explorado. Ela não deve tomar o lugar de ninguém, mas tem de ser solidária ao povo.
Dom Moacyr Grechi, arcebispo emérito de Porto Velho: A Igreja tem de estar ao lado do pobre, do sofredor, do explorado. Ela não deve tomar o lugar de ninguém, mas tem de ser solidária ao povo

Como o senhor avalia o décimo encontro da Igreja na Amazônia, realizado em Santarém? Quais foram os temas mais candentes do encontro?

Avalio como um encontro muito bom. A maior dificuldade foi o fato de não ter havido uma preparação em tempo. Talvez também não tenhamos levado o número de assessores suficiente que pudessem nos ajudar, em certo momento, porque no início de qualquer reunião com mais de 150 pessoas não é fácil encaminhar o trabalho. No entanto, o encontro confirmou o documento de Santarém, elaborado em 1972, e tirou toda a ambiguidade que existia nos documentos da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, no sentido de confundir Comunidades Eclesiais de Base – CEBs com as novas comunidades, redes de comunidades, que podem dizer tudo ou não dizer nada.

Isso quer dizer que…

Eu diria ainda que o documento de Santarém é a carteira de identidade da Igreja da Amazônia, porque é a partir dele que a Igreja começa a ter traços próprios. O documento de 1972, resultado do encontro em Santarém, de 24 a 30 de maio de 1972, já demonstrou as características que a Igreja deveria ter na Amazônia: assumir a causa do povo e dos pobres como se fosse nossa; considerar a evangelização libertadora no sentido pleno de libertação não só do pecado, mas de todas as consequências. Essas duas estrelas iluminaram as prioridades do documento que, naquela época, tinha como objetivo formar agentes pastorais, porque, na prática, 80% dos ministros, padres, bispos e irmãs vinham de outros países. Muitos não só evangelizaram, mas deram a vida pelo povo da Amazônia, auxiliaram em diversas áreas, como saúde, cultura e educação. A formação de agentes pastorais buscava acreditar nas possibilidades do povo da Amazônia. Quem trabalhava com os índios tinha de acreditar que eles poderiam assumir a sua missão em todos os níveis da Igreja. Nessa época, a Pastoral Indígena tinha sido um pouco esquecida, com exceção da atuação dos salesianos, no Mato Grosso e no Alto Rio Negro, em São Gabriel da Cachoeira, e da atuação dos jesuítas, no Mato Grosso. Criou-se, então, o Conselho Indigenista Missionário – Cimi e as frentes pioneiras, pois estava iniciando o êxodo, e pessoas do Rio Grande do Sul e do Paraná migravam para a Amazônia.

Como o senhor vê os povos da Amazônia hoje, 40 anos depois?

Já faz alguns anos que, a partir das palavras de Dom Erwin Kräutler, de Dom Antônio Possamai e de outros bispos da região, a Igreja começou a descobrir a Amazônia, porque eles não tinham ideia do que era a nossa Igreja e os nossos desafios. Com o tempo a Igreja foi ficando mais esclarecida, até que surgiu a Comissão Episcopal para a Amazônia, coordenada por Dom Jayme Chemello, então bispo de Pelotas, Rio Grande do Sul. Creio que, do ponto de vista eclesial, houve um crescimento de conhecimento e de colaboração, pois muitas pessoas vieram reforçar nossa caminhada. Os que participam do nosso cotidiano percebem que na Amazônia não existe só pobre e jacaré, mas muita gente consciente do Evangelho, que vive a fraternidade, que não deixa o povo abandonado e se engaja na política. Nesses últimos anos houve, infelizmente, uma corrupção generalizada, e as comunidades foram atingidas. As comunidades nunca quiseram se confundir com partidos políticos ou sindicatos; elas formavam e incentivavam as pessoas a participarem daquilo que achavam melhor. Incentivavam-nas a participar do sindicato, mesmo que este fosse coordenado por um ateu ou crente. O importante era lutar pela causa do povo.

Em 1972, a Igreja na Amazônia assumiu para si a questão indígena, dando origem posteriormente ao Cimi. Hoje, que questões a Igreja deve adotar para si?

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Nós, Igreja, temos de falar com humildade e questionar o que há de ruim na sociedade. Muitas coisas que não são boas também acontecem entre nós. Hoje, o pobre é novamente excluído. No tempo em que atuei no Acre, por exemplo, havia apenas os partidos PMDB e PDS, os quais não deixavam os colonos e seringueiros participarem das discussões políticas. Foi aí que surgiu o PT, que abriu espaço para essas pessoas, embora hoje todos os partidos estejam meio parecidos. Hoje a Igreja tem que admitir que a problemática da terra mudou um pouco de feição, mas o atual modelo do agronegócio e a criação de bois estão recriando o conflito e a destruição da Amazônia. Só em Rondônia têm 13 milhões de cabeças de gado, quer dizer, onde tem gado criado extensivamente, a floresta cai. Então, estamos alertando para que as pessoas tenham cuidado com o agronegócio, para que ele não destrua áreas de florestas virgens, porque a floresta é fundamental para manter a sustentabilidade. Nesse sentido, os quilombolas, os ribeirinhos também devem ter a oportunidade de viver uma vida decente.

Em sua avaliação, como a Igreja deve se pronunciar diante do anúncio da construção de novas hidrelétricas na região amazônica?

Se a Igreja não intervier nesses casos, ela negará a sua natureza. Ela tem de estar ao lado do pobre, do sofredor, do explorado. Ela não deve tomar o lugar de ninguém, mas tem de ser solidária ao povo, porque essas pessoas mais pobres são ameaçadas de morte a todo instante por juízes corruptos. A Igreja não pode ficar alheia, ela tem de correr riscos, inclusive de morte, como já perdemos diversos padres – bispos até agora não mataram nenhum, e não me matam mais porque eu morro antes. Algumas regiões do Brasil continuam achando que a Amazônia é a colônia do país. Como Portugal via o Brasil como colônia, de onde tudo tirava e nada dava, o restante do Brasil vê a Amazônia como a província energética da nação. As hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau são dois monstros. Há 25 mil operários trabalhando na construção dessas usinas. Obras colossais como essas atingem a criação de peixe, os trabalhadores que vivem da pesca; atingem aqueles que moram na periferia.

O medo da energia atômica faz com que muitos apoiem a construção de hidrelétricas. Muitas pessoas em Porto Velho faziam política dizendo que as hidrelétricas trariam o progresso. A Igreja, com suas pastorais, tem a obrigação de tornar clara essa situação, ou seja, explicar que existem aspectos positivos e mostrar quais são as implicações negativas para a Amazônia. Será que o povo da Amazônia não tem de ser compensado? Já retiraram da região a borracha, o ouro, a madeira. Quando viajo, aos sábados e domingos pelo interior, encontro tanto caminhão com madeira clandestina. Posso dizer hoje que houve alguma melhora nos locais em que as autoridades são sérias e cumprem as leis, porque ao menos as pessoas têm liberdade para falar e denunciar sem serem presas ou torturadas.

Fazendo um balanço dos 20 anos do documento “Santarém. A Igreja arma sua tenda na Amazônia”, quais são os desafios da igreja, hoje, na região?

Atualmente uma das problemáticas da Igreja é a questão do meio ambiente. Veja a questão da soja, que é plantada no Mato Grosso e transportada de caminhão para Porto Velho – são cerca de 1500 caminhões por dia. Depois, a soja é descarregada no rio Madeira, e as cargas são transportadas até Manaus, de onde saem os navios para o Japão e todo lugar do mundo. Imagina o lucro que deve dar essa soja, apesar do alto custo com transportes. Se não houver muito rigor das autoridades, nada vai mudar. Precisamos acabar com a corrupção. Se acabarmos com ela, a Amazônia será defendida. Do contrário, não sei como a floresta vai acabar. Hoje, o povo está ficando mais consciente. Ele resiste. Veja, porém, o casal de extrativistas que morava no Pará: resistiu e foi assassinado (José Cláudio Ribeiro e Maria do Espírito Santo). A Irmã Dorothy Stang, que sempre apresentou o Evangelho diante dos assassinos, também foi morta friamente, e os assassinos foram soltos.

Quais as maiores dificuldades que o senhor encontrou no período em que foi bispo no Acre e arcebispo de Porto Velho?

O maior problema que eu encontrei foi o crime organizado, e o caso do coronel Hildebrando Pascoal. Certo dia houve uma briga em um posto de gasolina, e um cidadão matou um parente do Hildebrando, que mobilizou a polícia para “caçar” essa pessoa. Nesse meio tempo, alguém matou um cidadão que estava ao lado do corpo do parente dele: serraram com uma motosserra os dois braços e as pernas, e depois colocaram o corpo dentro da sede da televisão Manchete. Por conta do assassinato, Hildebrando ofereceu uma oferta para quem indicasse onde estava o assassino do parente dele. Quando estávamos reunidos no Palácio do Governo com todas as autoridades da segurança – o juiz, o presidente do tribunal, o futuro presidente do tribunal, o comandante da polícia, o superintendente da polícia federal e eu -, Hildebrando abriu a porta chutando e disse: “Eu vou matar o assassino do meu irmão e quem passar na minha frente vai morrer também”. Nenhuma dessas autoridades reagiu! Um advogado pediu que eu intervisse e conversasse com ele. Aí eu fui falar com o comandante do Exército, e ele respondeu: “Dom Moacyr, eu não posso, por lei, interferir e, no mais, os meus fuzis são velhos e os meus recrutas não sabem atirar bem. Quem atira bem são os policiais que estão acostumados”.

O que aconteceu depois deste incidente?

Fui procurado pela rede Globo para conceder uma entrevista para o Fantástico. Na época, telefonei para a CNBB e perguntei se eu poderia conceder a entrevista. Eles disseram que sim, e que eu não estaria prejudicando, de jeito algum, o conjunto da Igreja. Concedi a entrevista que foi apresentada no Fantástico durante oito minutos. Depois da divulgação dessa matéria, Hildebrando não foi mais eleito deputado, e o Brasil teve conhecimento do crime organizado no Acre. No ano passado, fui chamado para depor num outro caso envolvendo o Hildebrando, e ele estava presente na sala. Os advogados me perguntaram se ele havia me ameaçado de morte. Eu disse que nunca, nem direta nem indiretamente. Contei que uma pessoa que ele e eu conhecíamos havia me dito que Hildebrando sabia que duas pessoas poderiam destruí-lo: o presidente do tribunal e o bispo, mas que ele não conseguia ter ódio do bispo. Nesse momento ele se levantou, me cumprimentou, e disse: “Os meus sentimentos são os mesmos”. Lidar com essa situação do crime organizado foi muito difícil. O Hildebrando tinha cerca de 300 soldados que prestavam serviços a ele.

O senhor foi ameaçado de morte alguma vez?

Fui ameaçado de morte várias vezes. Certa vez, um cidadão chamado João Sorbile pegou uma terra de três mil hectares, que era dos índios, e passou para 300 mil, com a conivência do Cartório de Boca do Acre, no Amazonas, e a vendeu para colonos do Paraná. Quando os índios voltaram para a terra – porque eles mudam de área de acordo com o período do ano, em busca de caça -, os colonos descobriram que a terra não era deles e foram expulsos.

Certa vez, esse João Sorbile me ameaçou e disse para o governador do Acre que iria me matar. O governador disse para eu sair do Acre por um tempo, mas eu fiquei, porque achava que era corajoso. Um dia, quando estava numa estrada na cidade de Boca do Acre, encontrei um carro estacionado e vi que era de João Sorbile. Senti um frio da cabeça aos pés, entrei no Jipe, fui embora, e vi que, como todo mundo, tenho medo da morte.

A partir da sua experiência no Acre e em Rondônia, quais os problemas que ainda afetam a sociedade destes dois estados, e envolvem as opções que a Igreja fez nesses dois contextos?
Um aspecto novo que surgiu são as imensas periferias das capitais e das cidades menores. É na periferia que o crime organizado continua. Muitos jovens são mortos e, além disso, a droga é algo comum nesses locais. Então, as periferias são um grande desafio para a Igreja hoje. As pessoas que moram na periferia não têm acesso à saúde e moradia adequadas.

Como vê as Comunidades Eclesiais de Base nos dias de hoje? Elas continuam com as mesmas características?

Alguns bispos e padres acham que as Comunidades Eclesiais de Base são uma fórmula política ou coisa assim. Falam isso por total falta de conhecimento. Eu tenho quarenta anos de convivência com as CEBs, admiro-as e fui, em parte, convertido por elas – não me converti de todo porque tenho um coração duro. Durante esses anos vi muitos atos de solidariedade, de amor, de ajuda ao outro. Vi pessoas caminharem dez quilômetros para ir a uma celebração na paróquia da comunidade para ouvir a palavra de Deus, rezar, para encontrar com outras pessoas e reforçar a sua fé. As comunidades precisam ser incentivadas na linha da missão. É preciso formar discípulos missionários. As santas missões populares, que são feitas em muitas de nossas paróquias, têm sido um instrumento para animar as comunidades, fortalecê-las e atualizá-las, porque hoje muito mais pessoas têm acesso à leitura e sabem ler. Nesse sentido, o Evangelho pode iluminar as situações de perigo das comunidades em relação à droga, por exemplo, e ajudar a tomar medidas necessárias.

Quanto às CEBs, ou elas mantêm as mesmas características ou têm que rasgar o Ato dos Apóstolos, porque as comunidades nasceram da ressurreição de Cristo e do Espírito Santo. Nesse sentido, o fundamental, em primeiro lugar, é a palavra de Deus: um cristão que não escuta a palavra e passa a escutar com os demais é muito melhor, porque na comunidade há colaboração, partilha, e as pessoas da comunidade se entendem melhor. Além do mais, nessas comunidades ninguém fica excluído, porque as pessoas se conhecem. Apesar de o ritmo da eucaristia na Amazônia ser mais devagar, porque dá para manter de duas a três celebrações por ano, as comunidades de base precisam ser preparadas para valorizar o sacramento da eucaristia: o corpo e o sangue de Cristo, que deu a vida para que nós tenhamos vida, para criar a Igreja.

E a Igreja de hoje no Brasil ?

A Igreja de hoje é a mesma dos Atos dos Apóstolos. É claro que ela mudou, mas existem coisas que não podem ser mudadas, porque são substanciais. Quando assisto aos programas de televisão da Igreja, vejo que estão abençoando demais pela televisão. Deveriam insistir mais na participação concreta e investir em programas com a substância da proposta da Igreja: morte e ressurreição de Cristo; amor ao próximo; perdão e amor até aos inimigos; abertura para todo homem e mulher como irmão e irmã. Esses pontos deveriam ser mais acentuados, em vez de benzer água. A Igreja permite e até aconselha benzer água como lembrança do batismo, como forma de gratidão pelo batismo recebido, mas tem se valorizado demais o devocionalismo, e esquece o fundamental da pregação. Além disso, a Igreja insiste muito na iniciação. Precisamos novamente voltar a uma preparação séria, sólida do batismo em etapa, depois a crisma, depois a eucaristia, sempre dentro de uma comunidade. É impossível iniciar alguém na fé fora de uma comunidade; ela é fundamental desde o começo, e assim será até o fim dos tempos.

Fonte: http://tribunadonorte.com.br

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