quarta-feira, 29 de agosto de 2012

As religiões segundo os dados do Censo 2010: desafios e perspectivas

As religiões no Brasil tendem a compor futuramente um campo complexo e difuso de filiações e trânsitos dos fiéis entre elas, com tendências ao acirramento da concorrência religiosa, antecipa José Rogério Lopes.

Por: Thamiris Magalhães

Em relação ao perfil do católico que emerge do Censo 2010 e dos traços mais característicos deste perfil, José Rogério Lopes afirma, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, que, segundo os dados do Censo, trata-se de um perfil popularizado, concentrado nos estratos de baixa renda e escolaridade. “O crescente avanço dos carismáticos entre os católicos tem acentuado um perfil espiritualista, mas conservador, com foco nas interações midiáticas e em grandes eventos”, diz. E acrescenta: “Por outro lado, é importante considerar que o catolicismo tem historicamente uma dinâmica plural de identificações e filiações, característica dos consensos hegemônicos, que libera os católicos de filiações rígidas e disciplinadoras. Assim, mesmo considerando as tendências conservadoras acima citadas, o perfil do católico ainda se caracteriza por uma composição variada e multifacetada”.

José Rogério Lopes é graduado em Pedagogia pela Universidade de Taubaté, mestre e doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. É professor titular do PPG em Ciências Sociais da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos. De sua autoria, destacamos A imagética da devoção; a iconografia popular como mediação entre a consciência da realidade e o ethos religioso (Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2010). É um dos organizadores de Diversidade religiosa, imagens e identidades (Porto Alegre: Armazém Digital, 2007).

Confira a entrevista. 

IHU On-Line – Quais são as principais características do mapa religioso brasileiro que emergem do Censo 2010? Como o senhor enxerga o futuro das religiões daqui para frente?

José Rogério Lopes – As características principais seguem uma tendência que vem se acentuando nas duas últimas décadas. O declínio dos católicos e o avanço crescente dos evangélicos. Dos 24.6% de queda do catolicismo, desde 1980, 19.7% decresceram desde 1991. No mesmo período, o número de evangélicos dobrou. Como o campo institucional dos evangélicos é mais diversificado, acelerou-se o processo de diferenciação religiosa no país. Para se ter ideia, no campo evangélico, que dobrou, os pentecostais triplicaram o número de adeptos no período de duas décadas, apesar da queda percentual de crescimento na última década (de 4.6% na década de 1990 para 2.7% na década de 2000).

Números

Os dados preliminares do Censo mostram também uma concentração dos que se declaram religiosos nas camadas menos escolarizadas (39.8% de católicos; 42.3% de pentecostais e 33.7% de evangélicos não determinados) e com baixa renda (66% de católicos; 75.3% de pentecostais e 69.6% de evangélicos não determinados), dispersados em regiões periféricas dos grandes centros e nas regiões nordeste e centro-oeste. Nessas mesmas camadas também aumentou muito o número dos que se declaram sem religião.

População cristã

Outro dado importante refere-se à soma da população cristã no país. Apesar de ligeira queda, elas atingem ainda o percentual de 86,8% da população, enquanto as demais religiões somam, juntas, 5%, e os sem religião chegaram a 8%, em um crescimento acelerado.

Aprimoramento

Essa diversificação institucional religiosa, porém, possui também características metodológicas e regionais que merecem mais atenção. Foi a primeira vez que o Censo aprimorou a tipologia de identificação da população, acrescentando ateus e agnósticos entre os sem religião. A mídia tem complementado esse aprimoramento com o uso de aplicativos na análise dos dados – como o Tableau Public – que permite realizar agrupamentos aprimorados dos dados, como fizeram os jornais Folha de S. Paulo e o Estado de São Paulo, nas matérias sobre o assunto.

Considerando a aceleração das mudanças dessas características, na série histórica recente, as religiões no Brasil tendem a compor futuramente um campo complexo e difuso de filiações e trânsitos dos fiéis entre elas, com tendências ao acirramento da concorrência religiosa.

IHU On-Line – Qual é o perfil do católico que emerge do Censo 2010? Quais são os traços mais característicos deste perfil?

José Rogério Lopes – Segundo os dados do Censo, trata-se de um perfil popularizado, concentrado nos estratos de baixa renda e escolaridade, indicados anteriormente. O crescente avanço dos carismáticos entre os católicos tem acentuado um perfil espiritualista, mas conservador, com foco nas interações midiáticas e em grandes eventos. Por outro lado, é importante considerar que o catolicismo tem historicamente uma dinâmica plural de identificações e filiações, característica dos consensos hegemônicos, que libera os católicos de filiações rígidas e disciplinadoras. Assim, mesmo considerando as tendências conservadoras acima citadas, o perfil do católico ainda se caracteriza por uma composição variada e multifacetada.

IHU On-Line – Muitos jovens, a partir dos dados do Censo, declararam não possuir religião, porque não encontram a verdade em nenhuma delas. Nesse sentido, como o senhor avalia o real papel das religiões? E como os jovens começam a ver, compreender e vivenciar a religião no mundo atual?

José Rogério Lopes – A “busca da verdade” torna-se, cada vez mais, um caminho com várias possibilidades. Essa justificativa indicada pelos jovens tem a ver também com o fato de que o crescimento da diversificação religiosa aumenta a “oferta de verdades”, mesmo quando esse aumento é produzido de forma mimética, como entre os evangélicos pentecostais e, sobretudo, os neopentecostais.

Trânsito religioso

Essa oferta crescente evidencia que o pluralismo religioso é concorrencial e as doutrinas religiosas apelam constantemente para a cooptação ou a fidelização dos fiéis. Assim, a concorrência religiosa que exterioriza essa variedade de verdades pode aparentar-se a uma prateleira de supermercado, como que expondo mercadorias à espera de clientes (o que favorece um trânsito religioso). Mas a crescente oferta de verdades tende a produzir uma reflexividade entre aqueles que a buscam. Afinal, entre tantas verdades, como escolher uma? Como já indicou o pensador americano Alvin Toffler , no livro O choque do futuro (4ª ed. Rio de Janeiro: Arte Nova, 1972), essa ilusão de uma miríade de escolhas acaba embotando a capacidade de discriminação dos indivíduos.

“Religião em trânsito”

Nesse sentido, o papel das religiões passa também por reflexividades institucionais endógenas, em contraste com “ameaças” exógenas diversas. Embora concorde com o pensador francês Luc Ferry  (O que é uma vida bem sucedida. Rio de Janeiro: Difel, 2004), na ideia de que a religião ainda tem um papel importante na definição do que seja uma boa vida, desde a composição de parâmetros éticos e ideais de realização pessoal e coletiva, a definição desse papel depende da dinâmica dessa reflexividade institucional em desenvolvimento e das orientações que as religiões passarão a adotar (o que evidencia um modelo de “religião em trânsito”, como indicado pelo antropólogo Ronaldo de Almeida ).

Já o aumento crescente de jovens em segmentos religiosos conservadores e desapegados da vida cotidiana (Toca de Assis  e Arautos do Evangelho , no catolicismo, por exemplo) mostra que a vivência dos jovens, em matéria de religião, tem se orientado por experiências com forte apelo corpóreo e espiritualista, de fundo disciplinador e comunitarista.

IHU On-Line – Qual o principal desafio que as religiões enfrentam atualmente? 

José Rogério Lopes – Vejo dois desafios importantes. O primeiro refere-se à necessidade das tradições religiosas traduzirem suas místicas, seus princípios éticos e seus sistemas doutrinários em linguagens acessíveis e atrativas às novas experiências sociais (que muitos autores têm tratado como “novas gramáticas sociais”), sem perder suas “estruturas de plausibilidade”, como bem argumentou Peter Berger, frente aos desafios do secularismo . Nesse caso, o Simpósio que o Instituto Humanitas Unisinos – IHU promoverá sobre Igreja, Cultura e Sociedade. A semântica do Mistério da Igreja no contexto das novas gramáticas da civilização tecnocientífica  pode ser um marco importante de análise. O segundo desafio é encontrar mediações para ampliar o diálogo inter-religioso, em um campo de concorrência acirrada entre tradições ou denominações religiosas.

IHU On-Line – Que pistas os resultados trazidos pelo Censo podem nos oferecer com relação à sociedade atual e a do futuro?

José Rogério Lopes – Nos dois casos propostos para análise, vou me autorizar a reproduzir uma introdução que elaborei para um livro organizado por amigos.

Os resultados do último Censo permitem reconhecer que o campo religioso contemporâneo carrega a marca da pluralidade e se define, mais do que antes, pelas problematizações que tal pluralidade provoca. Isso porque os reptos constantes que as diversas denominações religiosas dirigiram, e ainda dirigem, à predominância católica no Brasil, têm flexibilizado as fronteiras e os padrões sociais das práticas religiosas, e modificado o cenário institucional religioso.

Simultaneamente, vimos emergir nesse mesmo campo religioso de pluralismo concorrencial, nas últimas décadas, processos de significação individuais e coletivos que, combinados com estruturas de sentimentos abertas a novas percepções, rearranja de forma reflexiva os modelos prevalecentes de religiosidade. Reagindo a esse reordenamento, as antigas tradições religiosas se atualizam seletivamente, ora incorporando, ora desincorporando representações e crenças diversas. E seguindo a máxima de que nada se perde, tudo se transforma, essas mudanças têm deixado lacunas sobre as quais os atores religiosos contemporâneos fabricam novos modelos, ou também atualizam os antigos.

Nesse quadro de atualizações e fabricações religiosas inacabadas (que tenho denominado de campo performático-religioso), as experiências religiosas populares têm ganhado força, novamente, pela sua capacidade performática de produzir estratégias e gerir identidades em negociação com alteridades distintas.
Enquanto as institucionalidades religiosas se atualizam vagarosamente, em virtude de suas premências normativas (isso repercutiu, no último Censo, na constatação da queda dos fiéis da Congregação Cristã no Brasil, por exemplo), foi agindo em um plano transgressor, subversivo ou residual às normas religiosas, mesmo sub-repticiamente, que as experiências religiosas populares se atualizaram e passaram a reivindicar reconhecimento, no campo religioso.

IHU On-Line – A Igreja Universal também perdeu 10% dos fiéis na última década. Isso está relacionado com que fatores? 

José Rogério Lopes – Vários fatores estão envolvidos nessa queda. Destacaria três. As cisões no interior da Igreja Universal do Reino de Deus - IURD, tendo como exemplo a saída de bispos da Igreja que foram para a recém-fundada Igreja Mundial do Poder de Deus, arrastando milhares de fiéis; a difusão de uma ética indolor, pragmática e experimental – como indicada por Gillles Lipovetsky , em A sociedade pós-moralista. O crepúsculo do dever e a ética indolor dos novos tempos democráticos (Barueri: Manole, 2005) – na experiência de pertencimento religioso, que desobriga os fiéis do cumprimento de deveres absolutos e exteriores e reforça o processo de individualização e autonomia deles (perspectiva que atinge outras lógicas de pertencimento religioso contemporâneo); e a expansão da privatização religiosa, que era característica de católicos e, mais recentemente, de algumas denominações de protestantes históricos, que se define pela religiosidade vivida “à minha maneira”, como declaravam categorias de indivíduos, no Censo de 2000.

Hibridismo

Esses fatores permitem inferir que o crescimento religioso de uma denominação religiosa, sobretudo nos centros metropolitanos, como apontado pelos últimos Censos, está associado à crescente diferenciação de seus fiéis, pelo caráter contrastivo que sua concentração produz. Aqui, evidencia-se um hibridismo que se caracteriza pela intercorrência de escalas de crescimento religioso e urbano, como fenômenos que se interpenetram em fluxos constantes e que se arranjam em composições variadas. Esse fenômeno ainda carece de análise.

Outra explicação desse decréscimo diz respeito ao jogo de forças travado pela concorrência religiosa, no campo evangélico e pentecostal, com repercussões midiáticas que geram alianças conjunturais e repercussões na opinião pública, como ocorreu na última década, muito bem analisadas por Ricardo Mariano. 

IHU On-Line – Por que as regiões Nordeste e Sul ainda concentram o maior número de católicos?

José Rogério Lopes – Porque essas regiões estão dispostas em tradições populares e étnicas, respectivamente, da formação da sociedade brasileira, o que corresponde de forma apropriada com os resultados preliminares do Censo 2010, aqui em discussão.

IHU On-Line – Como pode ser definido o conceito de “desafeição religiosa”? Em que consiste? O que ela significa?

José Rogério Lopes – O conceito permite caracterizar uma indefinição crescente da identificação confessional declarada pelos informantes, sobretudo justificada por “uma insatisfação dos fiéis com os serviços prestados pelas suas igrejas”, como afirmou o sociólogo Pedro Ribeiro de Oliveira, em entrevista ao IHU (5 de julho de 2012) . Essa desafeição refere-se a uma mudança geracional que afeta as tradições religiosas (a diminuição crescente do número de jovens católicos e dos protestantes históricos), e que se reforça no aumento acelerado dos que se declaram sem religião nas décadas recentes.

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