quinta-feira, 15 de março de 2012

Serviços ambientais em terras indígenas do Acre – Aprofundando a discussão

Nas últimas semanas, as discussões acerca de REDD (Redução de Emissões de Desmatamento e Degradação) e Serviços Ambientais no Acre ganharam novos impulsos. Uma oficina para iniciar uma discussão sobre estes assuntos com os povos indígenas do estado, foi realizada em Rio Branco no mês passado pelo Instituto de Mudanças Climáticas IMC/AC, a Comissão Pró Índio CPI/AC e a organização estadunidense Forest Trends.  A transparência deste processo e a  imparcialidade dos organizadores em respeito à estes assuntos controversos foram questionadas entre outros, na minha coluna Alerta Socioambiental. O Conselho Indigenista Missionário – CIMI, Regional Amazônia Ocidental, enviou uma declaração para o Ministério Público Federal, onde, entre outros, acusa os organizadores de querer “convencer os indígenas a aderirem aos contratos de venda de carbono e outros, os PSA” (Pagamentos por Serviços Ambientais).
Oficina de cinco dias reuniu 40 representantes das 35 terras indígenas do Acre (Foto: Assessoria IMC, Fonte: http://pagina20.uol.com.br/index.php?option=com_content&task=view&id=27412&Itemid=42 )
Os organizadores do evento reagiram a estes questionamentos e acusações com uma declaração conjunta intitulada “Nota de esclarecimento conjunta para repor a verdade para a sociedade acreana”, onde rechaçam as acusações e asseguram que suas atividades estariam em conformidade com a lei e com  os princípios de acordos internacionais que tratam de direitos dos povos das florestas, tais como a Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas da ONU,  e a Convenção 169 da organização internacional de Trabalho – OIT. A CPI divulgou ainda uma segunda nota de esclarecimento recapitulando sua antiga relação de parceria com os indígenas do Acre e justificando sua atuação juntos com eles, relacionada aos assuntos REDD e PSA. O especialista da Forest Trends que participou da oficina inseriu na referida coluna, em reação ás críticas nela formuladas e à declaração do CIMI nela reproduzida, vários comentários, e sua instituição ainda questionou afirmações da organização internacional World Rainforest Movementsobre a falta de participação na elaboração da lei que regulamenta o Sistema Estadual de Incentivo a Serviços Ambientais no Acre.
Portanto, o documento que mais merece atenção entre as respostas à ação do CIMI, é uma carta, divulgada pela CPI, que consta as assinaturas das principais lideranças indígenas participantes da oficina. Na carta, os indígenas, após relembrar das lutas e conquistas dos seus povos, rejeitam qualquer tentativa de colocá-los sob tutela e afirmam sua capacidade de interagir com órgãos de governo e da sociedade civil.
Certamente, quem conhece o movimento indígena do Acre, não poderia duvidar desta capacidade. Entre as lideranças indígenas acrianas hoje encontram-se vários acadêmicos, coordenadores de organizações, pessoas que falam diversos idiomas, participaram ativamente em conferencias internacionais sobre meio ambiente ou direitos indígenas. Também tem que admitir que os trabalhos de educação, capacitação e formação que a CPI promoveu durante as últimas décadas certamente contribuíram com este alto nível intelectual e organizacional dos indígenas no Estado do Acre.
Entretanto, relendo a declaração do CIMI, entendemos que sua intenção não foi de questionar a capacidade dos indígenas. Entendemos que a acusação direciona-se exclusivamente aos organizadores, que teriam o dever de promover um “intercâmbio de informações pertinentes e imparciais” como estabelece o manual da FUNAI  para oficinas sobre mudanças climáticas, serviços ambientais e REDD.
Percebendo as assimetrias
Este manual, intitulado Diálogos Interculturais – Povos Indígenas , Mudanças climáticas e REDD, aponta, na parte da apresentação, para a necessidade de haver processos de formação que sejam participativos e simétricos, e ressalta que ainda falta uma reflexão aprofundada sobre os aspectos críticos do mecanismo REDD.
Entretanto, os aspectos mais críticos do comércio de serviços ambientais – como por exemplo os questionamentos ético-ambientais e questões da desterritorialização (que vamos tratar mais adiante neste artigo) – ao longo do manual sequer são mencionados.  Talvez a ausência destes aspectos se explica pela composição do grupo que definiu os subsídios para elaboração do manual. Este Grupo de Trabalho REDD e Terras Indígenas é composto, alem da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia – COIAB, por oito instituições não indígenas, entre eles a Agência de Cooperação Técnica Alemã – GTZ, Conservação Internacional – CI, World Wildlife Fund – WWF, The Nature Conservancy – TNC. As três últimas instituições citadas, também conhecidos como BINGOs são os principais proponentes dos programas PSA e REDD e frequentemente acusados de promover os interesses comerciais em detrimento de direitos indígenas.
Reencontramos neste arranjo o mesmo cenário que também predomina nas conferências internacionais da ONU sobre clima e biodiversidade, onde os povos indígenas não tem direito a voto e praticamente nenhuma participação nos processos decisivos. Os programas que resultam destas conferências são desenhados para atender aos interesses comerciais que se articulam pelas BINGOs e dirigem os governos.
Observando esta assimetria entre os atores envolvidos e a tendência de ofuscação ou distorção de informações, desde o desenho dos programas PSA e REDD no âmbito da ONU, até as orientações que a FUNAI fornece para nortear as discussões com os indígenas em nível local, temos razão para acreditar que este cenário tende a se reproduzir nas oficinas de capacitação que o governo do Acre promove.
Na sua nota, os organizadores afirmam que as decisões referentes às capacitações são tomadas por um Grupo de Trabalho Interinstitucional, vinculado à Comissão Estadual de Acompanhamento e Validação de Serviços Ambientais. Suscita a pergunta: Qual é efetivamente o grau de participação dos indígenas na idealização destes eventos e na escolha das fontes de informação que as subsidiam?
Ouvindo os questionamentos
Esta charge ilustra algumas das criticas que vem sendo articuladas com veemência por grupos da sociedade civil no mundo inteiro: “Protegem os direitos dos povos indígenas e as florestas do REDD!” … “Esta floresta é disponível para aluguel como sumidouro de carbono. Entrada proibida!” … “REDD – uma falsa solução para a mudança climática” (Fonte: http://www.celsias.com/article/seeing-redd-could-there-be-more-complicated-way-sa/ )
A discussão sobre REDD e PSA não é nova no Acre e na região amazônica. Houve nos últimos tempos uma serie de manifestações críticas de indígenas e não indígenas sobre estes mecanismos aqui, entre eles:a Carta do Acre, aCarta do I Seminário de Formação – “Projetos Desenvolvimentistas: impactos na região do Juruá”as preocupações do Movimento Indígena de Rondônia que tem com os projetos REDD em seu estado, Os questionamentos que Movimento Anticapitalista Amazônico (MACA) e o que o ex-companheiro de Chico Mendes, Osmarino Amânciovem articulando em relação à REDD e PSA , oposicionamento do próprio CIMI, organização que vem desde muito tempo apoiando os povos indígenas amazônicos nas suas lutas. E finalmente, os estudos críticos sobre a economia verde elaborados pelos integrantes do Núcleo de Pesquisa Estado, Sociedade e Desenvolvimento na Amazônia Ocidental (NUPESDAO) da Universidade Federal do Acre.
Caso que todas estas críticas e argumentações articuladas por segmentos da sociedade civil acriana e amazônica não vem sendo discutidas nas capacitações promovidos pelo governo, temos que perguntar : A decisão de ignorá-las partiu dos indígenas ou dos organizadores não indígenas?
Seria importante que os organizadores destes eventos ainda repensem estes pontos e acolham as  críticas acerca de REDD e serviços ambientais que vem ocorrendo no mundo inteiro e também no Acre. Notas de esclarecimento não serão suficientes para restaurar a credibilidade do seu papel como parceiros dos povos indígenas na sua busca por autonomia e vida digna. Será necessário uma reflexão aprofundada, crítica e aberta juntos com os indígenas.
A nota técnica que instaura a Comissão Estadual supracitada define como primeira atribuição da comissão: “Garantir a transparência e o controle social dos programas, subprogramas, planos de ação e projetos especiais do SISA”. Se esta intenção do governo for sincera, porque então estas críticas e argumentações não são ouvidas e discutidas abertamente com a sociedade acriana e principalmente com os povos da floresta?
Formulando perguntas
Nas noticias do governo sobre o evento, destaca-se o depoimento do professor indígena Joaquim Maná Kaxinawá, da Terra Indígena Kaxinawá Praia do Carapanã, doutorando em lingüística pela Universidade de Brasília – UnB:  “ainda não está claro o que vai ser vendido, como vai ser vendido, quem vai acompanhar, quem vai negociar, o que é mesmo essa venda, como vai ser feita”. Com muita franqueza o professor Maná aponta as grandes incertezas e dúvidas que ainda nem os especialistas em REDD e PSA podem esclarecer.
Dando continuidade às perguntas do professor Maná podemos ainda  interrogar:  para quem e porque o serviço vai ser vendido? Qual o interesse do comprador? O que ele vai ganhar em troca do seu pagamento? Mesmo com todas as incertezas que envolvem estes assuntos sabemos sem dúvida: empresas não atuam sem lucrar, sem ganhar algo, seja o direito de poluir ou degradar, direito de acessar recursos ou informação. As corporações sempre procuram maximizar seus direitos de acesso e de propriedade intelectual. O sistema capitalista procura constantemente aumentar seu controle sobre recursos, territórios e o comportamento humano.
Este Diploma do Fundo Amazõnia, emitido pelo BNDES atesta que a Petrobras, através de uma doação, teria contribuída com a redução de emissões equivalente a 129.164 toneladas de carbono em 2006. Quais direitos de poluição ou degradação ambiental este documento pode ceder para a Petrobras? Certificados deste tipo foram tambem emitidos para os governos da Noruega e alemanha. (Fonte: http://www.fundoamazonia.gov.br/FundoAmazonia/fam/site_pt/Esquerdo/Doacoes/ )
Compreendendo o nexo entre compensação e desterritorialização
O crescimento da economia hoje se baseia em estratégias de desterritorialização. O que é isso? A desterritorialização do capital, de forma sucinta, quer dizer que o capital se tornou flexível e grandes quantidades de dinheiro podem entrar e sair rapidamente entre diferentes mercados e através de fronteiras nacionais, causando o enriquecimento de um pequeno grupo de pessoas e a falência de grandes grupos ou até países. A desterritorialização da mão de obra quer dizer que empresas multinacionais podem mudar seus sítios de produção para os lugares onde esta está mais barata, e assim evitar custos em detrimento dos direitos dos trabalhadores.
O comércio de serviços ambientais faz parte desta lógica de desterritorialização, uma vez que ele faz tanto os serviços, quanto os prejuízos ambientais, intercambiáveis. Uma comunidade indígena que vende um serviço ambiental, pode ter os direitos sobre seu território perfeitamente respeitados e ter o usufruto exclusivo sobre seus recursos garantido. Mas através da compra deste serviço em um lugar, a empresa compradora pode ganhar o direito de degradar este mesmo serviço em outro lugar, longe do território desta comunidade. E aí reside o engano. A comunidade que aparentemente tem seus direitos territoriais e recursos intocados, pode acreditar que está participando de um negócio limpo, ou até, que sua contribuição para o meio ambiente vem sendo valorizado pela sociedade dominante, enquanto esta contribuição na verdade é aniquilada através da venda compensatória.
Esta desterritorialização dos serviços ambientais permite entre outros maior flexibilidade na implementação de megaprojetos como hidrelétricas ou estradas, uma vez que os prejuízos socioambientais poderão ser compensados com mais facilidade. Assim o comércio de serviços ambientais tende a corromper as relações de solidariedade entre os povos das florestas e com outras comunidades subalternas. Um exemplo desta dessolidarização é a situação de comunidades californianas que são ameaçadas por projetos REDD na província mexicana de Chiapas ou no Acre em consequência de um acordo multilateral entre estes três governos.
Salvaguardas devem prevenir o avanço descontrolado de projetos REDD. Entretanto, não havendo condições de fiscalização, e tendo a procura por parte de poluidores que desejam neutralizar sua pegada ecológica, mesmo projetos duvidosos avançam. Este certificado pode ser adquirido através da internet: “Esse certificado representa a contribuição de Mytreefrog.com em seu nome através da compra de uma compensação de carbono a partir do projeto de desmatamento da Celestial Green na Amazônia.“ (Fonte: http://mytreefrog.com/ )
Analisando as salvaguardas
Após a decisão de incluir as florestas no regime para deter o aquecimento global, começaram a ser discutidos e elaborados no âmbito da ONU, critérios e princípios que devem diminuir as inseguranças e possíveis impactos negativos de programas REDD e PSA para os povos das florestas. Estes critérios e princípios são chamados salvaguardas.
No Brasil foi elaborado e publicado neste contexto no final de 2010, o documentoPrincípios e Critérios Socioambientais de REDD+ para o Desenvolvimento  e Implementação de Programas e Projetos na Amazônia Brasileira. As salvaguardas estabelecidas neste documento tratam de aspectos legais, questões da distribuição dos benefícios, conservação e recuperação ambiental, alinhamento  com  as políticas e diretrizes nacionais, regionais, e locais, etc. Nota-se que as diretrizes são formuladas de forma muito genérica, e em grande parte recorrendo e reforçando apenas diretrizes legais que obviamente qualquer projeto deve obedecer. Lemos, por exemplo, neste documento: “As ações de REDD+ devem respeitar a legislação ambiental brasileira”, “Os  benefícios  advindos  das  ações  de  REDD+  devem  ser  acessados   de  forma  justa transparente e  equitativa…”,  “As ações de REDD+ devem atender a políticas estaduais e nacionais de REDD+”. As questões que se colocam em relação da comercialização dos certificados sequer são mencionadas. A possibilidade de haver prejuízos externalizados pelo projeto através da venda compensatória de créditos obviamente não foi tematizada nas discussões que resultaram neste documento. Parece como se fosse pressuposto neste documento, que uma comunidade que realiza um projeto REDD teria interesse apenas em salvaguardar seus próprios direitos, recursos e benefícios, mas que não importaria, quais consequências esta compensação pode causar para outras comunidades e ecossistemas, e quais “pegadas ecológicas” ela possivelmente ajuda a apagar em outro lugar.
Também aqui, a ausência de uma reflexão crítica pode ser explicada pela composição do grupo que conduziu as discussões e produziu o documento. O grupo inclui as poucas representações oficialmente reconhecidas de povos indígenas, tais como COIAB (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira), e de comunidades locais como GTA (Grupo de Trabalho Amazônico), e CNS (Conselho Nacional das Populações Extrativistas).  Entretanto, a  maioria das organizações que compõem este “Grupo de organizações da sociedade civil brasileira” são empresas e ONGs de consultoria, muitos conhecidos como sendo os principais defensores da economia verde. Entre eles encontramos BINGOs como WWF e TNC. Contribuiu com a elaboração por exemplo a empresa Biofílica Investimentos Ambientais. No site desta empresa podemos conferir que ela trabalha com prospecção e comercialização de eco-creditos, e que entre os membros da sua diretoria encontram-se banqueiros internacionais e outras pessoas que preenchem cargos de alto nível no mundo de negócios, como por exemplo vice-presidente da Câmera de Comercio dos Estados Unidos. Questiona-se se este tipo de empreendimento é indicado para contribuir com salvaguardas para os povos da floresta amazônica e pergunta-se porque o crasso conflito de interesses no grupo não foi tematizado.
Tempo de direitos ou tempo de hegemonia?
Podemos constatar uma grande assimetria na discussão sobre REDD e Serviços Ambientais. Claramente o interesse comercial predomina em todos os níveis. Questionamentos ético-ambientais como os acima mencionados vem sistematicamente sendo evitados, ignorados ou desqualificados nas discussões promovidas pelos governos e pelas ONGs que promovem tais programas. Em um primeiro momento colocam-se questões puramente técnicas na pauta da discussão, não deixando espaço para uma reflexão aprofundada. Num segundo momento – caso em que o questionamento é levantado – eles são frequentemente taxados como exageradamente ideológicos ou até paranóicos. Desta forma as comunidades e a sociedade em geral dificilmente chegam a conhecer o outro lado da moeda nesta discussão.
O que em tempos anteriores se manifestou em atos de direta opressão pelos colonizadores e tutelagem pelo estado, hoje – nos chamados “tempos de direitos” – muitas vezes age através de complexos mecanismos de manipulação e hegemonia. Estes mecanismos são difíceis de enxergar, tanto para indígenas, quanto não indígenas. Principalmente aqueles que se deixam instrumentalizar por este sistema se tornam cegos em relação a ele.
Entendemos que serão realizadas mais oficinas sobre serviços ambientais nas aldeias indígenas no Acre no futuro próximo. Esperamos que a denúncia no MPF contribua com uma discussão mais aberta. Sobretudo confiamos no discernimento das lideranças indígenas, na sua iniciativa própria para idealizar estas oficinas, na consciência da responsabilidade que eles têm em providenciar informações equilibradas para seus povos e comunidades, possibilitando que estes possam conhecer também o outro lado da moeda.
Leia Também:  http://www.institutocarbonobrasil.org.br/redd_/noticia=729924

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